Jorge Márcio Pereira de Andrade
Psiquiatra, psicanalista e analista institucional.
Recentemente apresentei através deste informativo a Casa dos Mortos. Apresentava o trabalho de uma bioeticista, Debora Diniz. Hoje relembrando que já falava, sem antevisão, sobre as exclusões e os “esquecimentos” de milhares de ‘vivos-mortos’ nos nossos Manicômios Judiciários. Hoje apresento, para críticas ou indagações: a Casa da Família Encarcerada, onde encontramos um jovem com DEFICIÊNCIA INTELECTUAL, mantido em uma cela construída pela própria família (vide matéria do Correio Popular indicada abaixo). Sim, o jovem Zaqueu, com 25 anos de ‘retardamento’, retornará às grades. As mesmas grades que ainda não conseguimos retirar de diversos espaços considerados de tratamento e recuperação de ‘doentes mentais’. Onde colocar/tratar os Zaqueus? onde ‘internar’ os que são mantidos sob o diagnóstico ‘mental’ e estão ameaçando as suas famílias ou a sociedade?
Na história do jovem “portador” de deficiência mental, (ninguém carrega em si a deficiência, donde hoje se afirmar sua diversidade funcional, segundo alguns bioeticistas com deficiência), hoje, temos de lembrar as quebras de paradigmas que estamos enfrentando, inclusive com a resistência de nossos especialistas em Saúde Mental, diante do processo de mudança terminológica, classificatória e de direitos humanos. Esta mudança paradigmática, onde a CIF (Classificação Internacional de Incapacidade, Funcionalidade e Saúde – OMS – 2001) vem ampliar a visão da CID (Classificação Internacional de Doenças, OMS), que apesar de sua visão ultrapassada do ‘retardo mental’, continua sendo utilizada como o principal motivo de exclusão/enjaulamento de alguns sujeitos desviantes, assim como se fez nos grandes manicômios brasileiros ( Juquery, Barbacena, Engenho de Dentro, Colônia Juliano Moreira, e muitos outros).
Nosso filósofo Platão já nos alertava, historiograficamente, na República: ” QUANTO AOS FILHOS SUJEITOS SEM VALOR E AOS QUE FOREM MAL CONSTITUÍDOS DE NASCENÇA, AS AUTORIDADES OS ESCONDERÃO, COMO CONVÉM, NUM LUGAR SECRETO QUE NÃO DEVE SER DIVULGADO”. E alguns tempos depois vieram os asilos, os ‘leprosários’, os depósitos de vidas nuas, transformados depois em espaços de ‘tratamento moral’, vivendo-se a revolução pineliana (Philippe Pinel), tendo, historicamente, como sua expressão máxima os campos de concentração ou de trabalhos forçados fascistas ou stalinistas. Viemos, na Humanidade, seguindo os preceitos de Sêneca e sua proposta de ‘limpeza étnico-social”: “Nós matamos os cães danados, os touros ferozes e indomáveis, degolamos as ovelhas doentes (pobre Dolly!) com medo que infectem o rebanho, asfixiamos os recém-nascidos mal constituídos; mesmo as crianças, se forem débeis ou anormais, nós as afogamos; não se trata de ódio, mas da razão que nos convida a separar das partes sãs aquelas que podem corrompê-las” (De Ira, I, xv).
Decepem, portanto, a macieira, investiguem seus galhos e principalmente suas raízes genéticas. Vejam a heredologia, do lado perverso e anormal, da famila Kalikak. Cuidado! há maçãs podres entre nossas maçãs saudáveis. Nasceu assim todo pensamento ariano, eugenista, racista, preconceituoso, bem como fundamento para biopolíticas onde o corpo ‘defeituoso ou anormal’ é o risco a ser vigiado, segregado, controlado e, se possível, eliminado. Nessa lógica não são as condições sociais, econômicas ou políticas que produzem seres ‘deficitários’ em seu processo de produção de subjetividades alienadas, marginalizadas e alienantes.
Por exemplo, se uma mulher estiver com um ‘concepto’ ou ‘feto’ anormal por ser ‘sindrômico’, ela será classificada imediatamente como um ‘risco’, mas não pelas condições e necessidades de cuidados especiais, mas pelo o que ela trará, como o ‘ovo da serpente maligna’ no seu ventre, de invalidez, feiura ou de monstruosidade para nosso mundo tão perfeito. Vejam o filme Gattaca, a experiência genética. Assistam a esta representação fílimica (será apenas ficção científica?) da produção de um desejo que se projeta no futuro, a separação, com o aconselhamento/aprimoramento genético, entre os Válidos e os Inválidos. Um futuro asséptico, onde a ordem e o progresso são a tônica, extremamente ‘clean’ (limpo e descontaminado), que nos leva à exasperação. Nesta película veremos, se nos identificarmos projetivamente, como um cadeirante que, ao oferecer a perfeição de seu sangue para que um ‘imperfeito-normal-nascido naturalmente’, torne-se, utopicamente, nesse futurismo da fria sociedade geneticamente modificada, de defeituoso fisicamente, após um acidente, para intelectualmente ideal ao ser forjada uma identidade do que nasceu com imperfeições genéticas, e vale tudo para ganhar uma viagem prêmio à Lua, inclusive o assassinato.
Eis pois porque, na minha visão crítica de todos os eugenismos, presentes, passados ou futuros, a afirmação de que poderemos continuar mantendo a produção serializada de grades, umas visíveis outras não. Não temos a segurança de Gattaca, muito menos a sua higienica perfeição moral. Assistimos a imolação de uma jovem mulçumana na França, o apedrejamento de uma mulher no Afeganistão ou o cárcere de ‘loucos’ infratores ou de ‘deficientes’ no Brasil, com a mesma naturalização: todos eram, ou melhor continuam sendo apenas as ‘frutas podres, corrompidas e contaminantes’ que merecem continuar fora do nosso cesto de ofertas de inclusão, ou passarem por uma ‘limpeza-faxina’, para depois serem afastados do mundo dos ‘normais’ e ‘validos’.
Enfim, que nossos múltiplos Zaqueus, com suas deficiências, possam ser entendidos nas suas reações agressivas, que, talvez possam ser o resultado/reação de uma família, ou grupo social, que, em sua pauperização e desfiliação, também esteve encarcerada na miserabilização, na vulneração e na exclusão social.
Mas, para que não pensem que só há este tipo de família, remetendo à sua possível estatística reduzida por estarem na marginalidade social, sugiro a busca de conhecimento urgente de outros modos de subjetivação e de relações familiares. Precisamos, todos e todas, implicados com a mudança/remoção de paradigmas, vislumbrar o lugar de autodefesa e subjetividade que Zequinhas, Zaqueuzinhos, Zezinhos e Zefinhas. Muito embora, diagnósticados como ‘mentais’, em suas diferenças cognitivas e nas diversas formas de ser e estar, inclusive doentes, em sofrimento mental ou com transtornos, mesmo com manifestações heteroagressivas, urge sua afirmação como um Outro, sujeitos a serem respeitados e vistos com direito à voz E SEUS DIREITOS HUMANOS. (vide Declaração de Montreal, outubro de 2004 – www.defnet.org.br/decl_montreal.htm ).
E, quem sabe, contaminados de seus ‘direitos humanos’ nos afetaremos na mudança de paradigmas e compreensão de suas limitações intelectuais e corporais, sua heterogeneidade, multiplicidade e diversidade humana e cultural. E, um dia a ser desejado, que possamos refletir sobre nossas próprias limitações intelectuais na hora de colarmos em seus corpos/vidas a periculosidade, o medo, a agressividade e o ‘risco social’, diagnosticando a sua necessidade de exclusão e eterna hospitalização/encarceramento.
Recomendo a todos/todas a leitura atenta e cuidadosa de um esmerado trabalho: Pessoas Muito Especiais- a construção social do portador de deficiência e a reinvenção da família (2003 – Editora Fiocruz, RJ), de Fátima Gonçalves Cavalcante, psicóloga, resultado da interdisciplinaridade da Antropologia, da Psicologia e da Saúde Pública, como uma resultante de uma pesquisa, séria e ética, que busca conhecer a desafiadora experiência de famílias com o nascimento de um filho com alguma forma de deficiência. Lá encontramos a história de Santa, que poderia ter virado uma Santinha a mais, lá nas minhas Minas Gerais, mais precisamente há alguns quilômetros de minha terra natal, na estância hidromineral de Caxambu. A pesquisadora nos mostra através de sua história a eficácia do ‘ethos’ do cuidado, “propiciando as melhores condições possíveis para o desenvolvimento de uma pessoa portadora de deficiência mental”. Ela afirma que: “considero esta história (a de Santa, pois há outras histórias de vida na pesquisa) como uma experiência em que o elemento central do sucesso está não na medicina psiquiátrica, nem na ajuda da psicologia do desenvolvimento, e sim no mundo da cultura, que reatualiza, no cotidiano, a existência e o respeito à diferença, permitindo que Santa aflorasse de forma positiva. O ESPAÇO DE SUA EXPRESSÃO FOI O SISTEMA FAMILIAR E COMUNITÁRIO…”.
Mas, lamentavelmente nem todas as famílias são santas ou de Santas. Nem todos os pais são ‘portadores’ do desejo de transformação de suas histórias de ‘luto’ em luta cotidiana pela afirmação e reconhecimento de seus filhos com deficiência ou outras condições ‘mentais’. Há ainda os que queimam seus filhos, os que, punitivamente, os apedrejam ou aprisionam, como solução de seu profundo desejo de se livrarem de suas próprias imperfeições humanas, de suas culpas mais reconditas e negadas. E há os milhares, a maioria, que continuam imersos na exclusão social.
Continuaremos discípulos radicais e platônicos de Sêneca e dos neo-eugenistas/higienistas (ainda ‘cientificamente embasados em Lombroso e Francis Bacon) ? ou ainda é possível nos libertar, coletiva e individualmente, de nossos preconceituosos cárceres mentais?
E Gattaca será apenas um bom filme de ficção para o ensino/debate de Bioética, Direitos Humanos e Declaração Univesal sobre o Genoma Humano.
jorgemarciopereiradeandrade copyright 2009-2010 (favor citar a fonte nas reproduções ou difusões do texto)
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MATÉRIAS DO CORREIO POPULAR, CAMPINAS, SP –
http://www.cosmo.com.br:80/noticia/28915/2009-05-21/rapaz-com-deficiencia-mental-volta-para-casa.html
http://www.cosmo.com.br:80/noticia/28837/2009-05-20/deficiente-e-enjaulado-sem-roupas-e-com-fome.html
Fonte:
InfoAtivo DefNet – nº 4231 – Ano 13 – MAIO de 2009
EDIÇÃO EXTRA urgente
Editor Responsável – Dr. Jorge Márcio Pereira de Andrade (CREMESP 103282)
WWW.DEFNET.ORG.BR
RETRANSMITE E SOLICITA DIFUSÃO NA INTERNET – CAMPINAS, SP – 22/05/09