Sem pátria acessível e inclusiva a democracia é impossível

Luis Fernando Astorga é Fundador da RIADIS (Rede Latino-Americana de Organizações Não-Governamentais das Pessoas com Deficiência e suas Famílias) e Diretor-executivo para as Américas e Caribe do Instituto Inter-Americano sobre Deficiência e Desenvolvimento Inclusivo. Tem 56 anos de idade e é jornalista, mas a maior parte de sua vida tem dedicado à política social. Atualmente também atua como consultor internacional em direitos humanos e deficiência. Nasceu e mora em San José, capital de Costa Rica. Confira entrevista exclusiva ao Jornal da AME.

AME – Como e quando aconteceu sua deficiência?
Luis Fernando Astorga – Em agosto de 1986, produto de um acidente de trânsito, que me aconteceu na Nicarágua.

AME – Como é ser uma pessoa com deficiência na Costa Rica?
Astorga – Mesmo que na Costa Rica existam alguns avanços relativos a este assunto, ter deficiência significa ser uma pessoa discriminada. É enfrentar cotidianamente dificuldades de acesso tanto no aspecto arquitetônico como nos serviços públicos e privados, em geral.

AME – Como se tornou uma liderança na área da deficiência na América Latina e Caribe?
Astorga – É um trabalho constante desenvolvido em múltiplos cenários, em que se promovem e defendem os direitos das pessoas com deficiência, mas quero destacar quatro dessas frentes: estou, desde o início, no mesmo instituto ao qual pertenço (IIDI), atuo junto a RIADIS, fundei e desenvolvi a lista virtual de discussão do Yahoo “Discapacidad y Derechos humanos” e desenvolvi e minha participação junto as Nações Unidas, em todo o processo de construção da Convenção.

AME – Em todo este tempo de militância, qual foi sua maior conquista?
Astorga – A participação emocionante do processo de construção de uma Convenção sobre os direitos das pessoas com deficiência, especialmente por meio da participação no Comitê de Trabalho, que redigiu um esboço desse trata internacional no inverno nova iorquino de 2004 (representando as ONG das Américas).

AME – Como poderia resumir a situação das pessoas com deficiência na América Latina e Caribe?
Astorga – A situação na América Latina, infelizmente é delicada. Vivemos o que podemos chamar de apartheid silencioso, onde a América Latina possui violentos contrastes de concentração da riqueza em muitas poucas mãos e de maneira muito extensa, muita pobreza para milhões de latino-americanos e entre estes, estão certamente muitas pessoas com deficiência e suas famílias. Vivemos esse círculo vicioso de pobreza e deficiência, porque a pobreza, de muitas maneiras gera a deficiência e a deficiência gera pobreza, dessa maneira colocando, em toda região, as pessoas com deficiência estão entre os mais excluídos dos excluídos. Temos 85 milhões de pessoas com deficiência na América Latina, como estimado pela OMS. Dessas, 68 milhões se localizam na pobreza e extrema pobreza. Isso significa que mais de 80% das pessoas com deficiência são pobres. A pobreza acompanha as pessoas com deficiência e suas famílias. Este é o quadro na América Latina. Há violações nos direitos humanos das pessoas com deficiência, mas que não se manifesta dessa forma. Somos invisíveis em nossas sociedades e somos invisíveis para as organizações internacionais. Fazendo um retrato rápido da situação das pessoas com deficiência, vemos que há um descaso no acesso à educação. A educação que se pratica é uma educação segregada. A educação inclusiva é uma expectativa e não uma realidade. Segundo a OIT, mais de 85% das pessoas com deficiência estão desempregadas na América Latina, deixando assim as pessoas em subempregos. Os salários não são equivalentes ao de pessoas sem deficiência em cargos semelhantes. E há um impacto muito limitado em políticas afirmativas por parte do setor público na contratação de pessoas com deficiência. Existem Leis de Cotas em muitos países da América Latina, mas elas não são cumpridas, nem no setor privado e nem no setor público.

AME – Com este panorama nada favorável, onde reside a esperança?
Astorga – Apesar deste panorama atual, há uma perspectiva de esperança. A Convenção da ONU foi aprovada em dezembro de 2006 e entrou em vigor internacional em 13 de maio de 2008. Este é um marco sem precedentes na história dos direitos das pessoas com deficiência, porém, não haverá mudança somente porque a Convenção existe. É preciso que o modelo em vigor hoje nos setores acadêmicos e políticos sejam substituídos e uniformizados. Agora existe um instrumento universal para orientar as normas a serem adotadas. Porém, a Convenção da ONU não é um instrumento de mudanças por si só, não é uma varinha mágica do Harry Potter, que pode transformar a realidade. É preciso que organizações em prol das pessoas com deficiência lutem para que os Estados cumpram sua parte. Podemos e devemos utilizar essa ferramenta para impulsionar a mudança. Porém, sem trabalhar com ela, podemos aguardar 20, 30 anos e não haverá mudança e só vai restar o lamento do que poderia ter acontecido e de como poderia ser e não é. A responsabilidade está em nossas mãos.

AME – Como a pessoa com deficiência é percebida nos países latino-americanos?
Astorga – Nessas sociedades domina a visão tradicional, em que predomina a caridade, a piedade, e isso é muito preocupante. Os estudos mostram que a sociedade subestima, discrimina e exclui quando as camadas importantes da sociedade rechaçam as pessoas com deficiência e isso é muito grave. Quando se estuda como atuam as políticas públicas que atendem às pessoas com deficiência, percebemos que são muito limitadas, que possuem enfoque voltado ao modelo médico e assistencialista e não voltado aos direitos das pessoas com deficiência. É preciso haver intervenção nesse sentido, para que as políticas públicas que surgirem sejam abordadas de maneira diferente.

AME – E sobre a vasta quantidade de leis para pessoas com deficiência, no Brasil e América Latina, qual é sua avaliação?
Astorga – Quando analisamos as leis dos países da América Latina, vemos que muitas delas seguem as normas da ONU e da Convenção para os Direitos das Pessoas com Deficiência e também às regras da OEA sobre Discriminação das Pessoas com Deficiência. Catorze países da região já ratificaram a Convenção da ONU, o que nos dá muitas esperanças, porém, até o momento, não colhemos muitos frutos disso. Temos muitas normas, algumas muito boas, outras razoáveis e outras más, mas seu cumprimento é muito limitado. Existem leis sem regulamentação em nossos países. Os Conselhos Nacionais para assuntos de Deficiência são fracos. Existem políticas muito pontuais sobre deficiência que não atingem a todas as pessoas. Há ainda uma dependência excessiva da cooperação internacional, ou seja, não são os Estados que assumem a responsabilidade. Pela lei os Estados devem prover as ajudas técnicas necessárias, mas o acesso é muito limitado, há muitas pessoas com deficiência que precisam se arrastar porque não têm ajuda técnica adequada. E muitas vezes a responsabilidade é passada para instituições privadas e filantrópicas. Muitas pessoas com deficiência na América Latina acabam não podendo sair de casa por conta da falta de ajudas técnicas, porque o ambiente é inacessível. É preciso gerar condições para que possamos desfrutar de nossos direitos. Há uma lista de instituições privadas para as quais o Estado passa as responsabilidades, inclusive de serviços que são obrigatórios por parte do Estado.

AME – Poderia deixar uma mensagem final aos nossos leitores?
Astorga – Considero que há razões suficientes para termos esperanças. As pessoas com deficiência do mundo inteiro contam com um instrumento (a Convenção da ONU), que convertido em lei nacional por meio da ratificação, podemos transformar a realidade das pessoas com deficiência. Podemos utilizá-lo em processos participativos e propositivos de eficaz incidência, para exigir políticas públicas e programas, transversais e inclusivos, que permitam a realização efetiva dos direitos das pessoas com deficiência. Isto não é outra coisa senão que trabalhar para avançar para o desenvolvimento inclusivo, que forma parte do conteúdo deste tratado internacional. As organizações de pessoas com deficiência devem fortalecer-se conforme o que estabelece esta Convenção para, de maneira eficaz, trabalhar para que o tratado se implemente, em ossos países, em nossas regiões. Devemos converter nossos eventuais debéis e emergentes movimentos associativos em movimentos sociais, que gravitem mais fortemente em nossa sociedade, apresentando nossas justas e urgentes demandas. Nossos movimentos, potencializados, política e socialmente, devem construir alianças com outros setores e movimentos sociais, que tenham também justas demandas contra a injustiça e exclusão. Termino dizendo que sem pátria acessível e inclusiva, a democracia para as pessoas com deficiência de todos os países, é impossível.

Fonte: http://www.ame-sp.org.br/noticias/entrevista/teentrevista39.shtml

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