
Quantas vezes já ouvimos essa frase? Quantas vezes até acreditamos nela?
“Eles são muito teimosos.”
“É coisa da síndrome de Down.”
Vamos parar por aqui.
Quando aceitamos a teimosia como explicação padrão (como se houvesse um “gene da teimosia”), contribuímos para uma interpretação errada do que realmente está acontecendo dentro do sistema nervoso da pessoa com síndrome de Down.
Teimosia, recusa em “obedecer”, “desafiar”, e todas essas coisas que nos dizem ser “problemas de comportamento” comuns às pessoas com síndrome de Down, na verdade são reações paralisantes – um desligamento neurológico quando a demanda é difícil demais, rápida demais ou não é compreendida com clareza.
Assim como bater e empurrar são reações do tipo “luta”, sair correndo, andar em círculos, se recusar a sentar ou fugir da sala são respostas do tipo “fuga”, o desligamento total (shut-down) é uma reação do tipo “paralisante”.
Quando esses sinais visíveis de desregulação são enfrentados com abordagens comportamentais com recompensas, reforços positivos ou punições (como perda de privilégios), o resultado é mais agitação e raiva.
Pense que você está em uma aula onde todos falam uma língua que você não entende. Você não sabe quanto tempo aquilo vai durar, alguém faz uma pergunta e você nem percebe que é com você, talvez esteja com vontade de ir ao banheiro, e um auxiliar que você não compreende continua te levando de volta ao seu lugar. Aí, quando você tenta sair da sala, tomam seu celular.
Essa tal “teimosia” se torna ainda mais complexa porque é o resultado de dinâmicas de poder aprendidas. A pessoa está tentando recuperar o controle em um mundo onde quase nunca tem controle algum.
O que parece ser desafio pode, na verdade, ser:
• Uma resposta de estresse de um sistema que ainda está aprendendo a se autorregular
• Um descompasso entre a demanda e a capacidade da pessoa de processar o que está sendo pedido
• Um padrão de interação adulto-pessoa com síndrome de Down que vira uma disputa pra ver “quem vence”, ao invés de uma busca por solução
• Raiva porque a pessoa deseja ter controle
• Falta de tempo suficiente para processar a informação
• Uma necessidade fisiológica no próprio corpo que gera ansiedade
• Um mal-entendido por parte do adulto: dizer “vai se vestir” não é algo simples se a pessoa não tem integração entre direita e esquerda (algo frequentemente afetado por reflexos primitivos mal integrados e imaturidade nos centros vestibular e cerebelar)
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EM VEZ DE DISPUTA DE PODER, OFEREÇA ESCOLHAS EMPODERADAS:
Escolher gera pertencimento. Pertencimento reduz resistência.
Isso não tem nada a ver com ser “permissivo”. É um estímulo do neurodesenvolvimento.
E, como tudo relacionado ao neurodesenvolvimento, começa pela nossa mentalidade.
Você acredita no estereótipo de que “pessoas com síndrome de Down são teimosas”? Se sim, por quê?
Vamos começar encontrando as pessoas com síndrome de Down onde suas necessidades neurológicas estão.
Afinal, não importa o quanto a recompensa seja doce ou a consequência seja negativa.
Não dá para recompensar ou castigar um sistema nervoso.
Se não for uma questão de tempo ou de segurança, passe o controle para a pessoa.
Dê o tempo que for necessário para a pessoa responder.
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ANTES DE MAIS NADA: REGULE PRIMEIRO, DEPOIS CONVIDE A PESSOA A SE CONECTAR
Antes de oferecer escolha, estrutura ou convite à colaboração, é preciso acalmar o sistema nervoso – da pessoa com síndrome de Down e do adulto.
Se a pessoa estiver em estado simpático (luta, fuga ou paralisia), o corpo dela está em modo sobrevivência, não em modo de conexão.
E se você estiver no “modo luta”, não vai conseguir criar oportunidades de conexão com sucesso.
Comece com atividades de regulação como: respiração profunda, balançar numa cadeira, abraço apertado, presença conjunta em silêncio.
Regule primeiro, depois convide a colaborar.
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10 FORMAS DE TRAZER EMPODERAMENTO PARA A ROTINA (MESMO NA CORRERIA)
1. Crie uma Agenda Diária Juntos
Comece o dia dizendo: “Essas são as coisas que precisamos fazer hoje. O que você gostaria de fazer?”
Use imagens, palavras ou ícones. Pergunte: “Que horas vamos ao parque?” e deixe que ela mesma coloque no calendário.
Escolha = envolvimento.
2. Planeje a Manhã na Noite Anterior
Num quadro ou cartaz no quarto, desenhem juntos a rotina: escolha a roupa, desenhe ou escreva os passos:
“me vestir, escovar os dentes, tomar café, arrumar a mochila”. Deixe que ela marque os itens de manhã.
Ela comanda o ritmo.
3. Delegue o Cardápio e as Compras
Sente com seu filho(a) e criem juntos a lista: “Escolha três legumes que você quiser.
Você escolhe o lanche. O que precisamos pro café da manhã?”
Com idade suficiente, ela mesma pode buscar no mercado, pesar, usar o caixa automático.
4. Deixe Liderar na Cozinha
Lavar frutas? Misturar ingredientes? Mexer a sopa? Isso não são tarefas, são experiências de controle e conquista.
E ainda fortalece o vínculo. Eu amo cozinhar com o Lucas. Somos parceiros na cozinha. Erramos juntos, ajudamos um ao outro.
5. Cultive Juntos
Mesmo que seja só um vasinho, deixe que a criança escolha o que plantar, regar, acompanhar e depois cozinhar.
Isso cria pertencimento da terra ao prato.
6. Dê Poder de Planejamento
Antes de eventos novos (terapia, passeio, médico), desenhe um quadro do tipo: “Primeiro , depois , depois __, FIM!”
Deixe a pessoa montar a sequência ou ir marcando. Estrutura gera segurança. Previsibilidade gera participação.
7. Autonomia nas Roupas
Dependendo da idade: separe duas opções e deixe escolher ou permita criar seu próprio look.
Decisões pequenas evitam resistência em decisões grandes. Mostra que a opinião dela importa.
E, a menos que esteja em risco de hipotermia ou insolação, respeite a escolha.
8. Rotina de escovar os dentes com Autonomia
Em vez de “Vai escovar os dentes!”, diga: “Você quer escovar antes ou depois de ler?”
Deixe escolher a pasta, colocar o cronômetro, talvez até escovar com você. O foco é autonomia, não obediência.
9. Mostre Sua Vulnerabilidade
Se alguém nunca erra e só aponta seus erros, você se sentiria motivado?
Errar junto, rir junto, pedir ajuda à criança, mostrar que aprendemos com ela.
A ideia é que seu filho pense: “Preciso da minha mãe pra me ajudar” e não “Não conta pra minha mãe!
10. Gratidão
Diga: “Obrigada por me ajudar no mercado”, ou “Foi tão bom nosso passeio, obrigada por compartilhar isso comigo”,
ou “Essa receita ficou ótima, obrigada!”. Gratidão constrói função executiva, confiança e co-regulação — sem pressão.
Geralyn Spiesz – Terapeuta ocupacional
Traduzido e adaptado de: dsactionplan.com/the-stubborn-myth-why-our-kids-deserve-a-better-narrative/